terça-feira, 21 de julho de 2009

SAFRA RARA

Era verão. O avermelhado verão, quando sentiu entre suas coxas escorrer amor. Um amor rubro, todo feito para o adeus.
Não sabia por quem puxara porque o sangue de sua mãe era tão límpido, quase rosa. Se esvaia por entre quartos, banheiros e cozinha; como uma garrafa de vinho rose se derrama entre taças. Talvez tenha puxado por seu pai. Seu sangue era cristalino e percorria o quintal, ultrapassando o cercado da casa; como o vinho branco que se evapora sobre o pernil assado.

E a pergunta permanecia entre dentes. Era uma pergunta que não tinha resposta. Era uma pergunta que assassinava respostas. A resposta é faca de dois gumes. E por isso não respondia às perguntas, porque gostava mesmo era de ir dizendo.

No fundo temia a resposta. Ter medo era seu modo de viver. Só sabia dizer adeus como seu sangue. Adeus era romântico, religioso e também vermelho. Era como se estivesse desistindo a favor de Deus. Adeus era seu sinônimo de fé. Quanto mais dizia a Deus, mais sangue escorria entre suas pernas. Um sangue que morria na mesma terra em que fora semeado.

Era fevereiro e sol invadia seu quarto pelas frestas da janela e o calor impulsionava-a escrever poesias para exorcizar a vontade de dizer adeus. Como lhe faltava coragem, sussurrava a Deus às palavras não ditas na folha de papel. Como um cordão umbilical se despede do ventre materno e se entrega a mãos salvadoras.

Tentava escrever coisas banais. Queria ser leve. Falar das amoras silvestres, do gosto e do cheiro do café amargo, do silêncio do mar, do peixe que se escama, etc, etc, etc. Mas não conseguia... Tentava. Só Deus sabe como tentava, mas seus pensamentos suplicavam: sangue, vinho, galinha ao molho pardo!E por ser assim, ninguém a entendia, nem ela mesma se entendia às vezes, por isso perdoava, como a galinha perdoa Deus por nascer sem amor.

Queria dizer como vai? Mas como vai é verde e ela queria o vermelho. Mas o vermelho é vinho tinto de safra rara. Não se bebe, contempla-se. Vinho velho em odre novo e eu quero o gosto do carvalho.

Para amassar a uva é preciso amá-la. Para despejá-la dentro do odre é preciso amá-la. E dessa fermentação de amor, ter-se-á vinho nobre. É preciso amar o que se deseja beber e comer. Assim como a minhoca ama a terra e a galinha ama a minhoca e a dona da galinha ama seu pescoço decepado jorrando sangue de seu corpo gordo; para depois vê-la em pedaços, temperada com sal, ervas e sangue morno. No menu: Galinha ao Molho Pardo: sangue que se ama até a morte.

O vinho foi derramado sobre a toalha de linho branco e ela ficou calma, totalmente entregue ao sangue que pulsava dentro de si. Nunca se ama o sangue alheio. O sangue alheio é azul e o meu é vermelho-vinho.

A luz do abajur sobre a mesa deixava o vinho derramado mais vermelho. Queria bebê-lo misturado com o verniz da mesa de canela. Mas naquele momento lhe era proibido. Então tomou-se pela voracidade de dizer adeus. Depois, solitariamente com sua língua escarlate bebeu todas as gotas daquele raro vinho. Nem a toalha poupou, apesar de ter entranhado no bordado, fez o doce sacrifício de tentar torná-la alva novamente.

Amar o invisível é tarefa para os poetas. Eu amo o vinho que se deixa derramar sobre a toalha branca. Eu amo o vermelho da espada-de-são-jorge. Eu amo o sangue. O sangue é sagrado, como a tinta rubra da caneta que escrevo. É preciso pensar no sangue como se pensa em amoras silvestres.

Lilian Flôres

8 comentários:

  1. Bem Clariciniana!Adorei este e que sua vida seja marcada por palavras,sonhos e suspiros!
    Que a densidade dos sentimentos seja transformada em beleza de SER e que sendo vc possa transformar,nem que seja por momentos ,aos seus leitores, a um lugar mais elevado de sentir!
    Parabéns,ta muito bacana seu Blog.
    Seguirei-te enfim!
    Bjs Tracy Aranha Costa

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  2. Obrigada Tracy pelas suas sensíveis palavras e realmente, precisamos mais sentir do que entender. Infelizmente, as pessoas estão presas ao racional, no que se pode tocar, no que concreto. Fico muitooooo feliz que tenhas conseguido sentir, que vai além do entendimento.
    Beijosssss
    Lile

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  3. Li..
    Quando comecei a ler, pude escutar o som
    Da sua voz, recitando belas poesias em meio ao
    Sarau. Não é um simples recitar, é emoção, é paixão.

    Parabéns.
    Desejo muito sucesso à você.

    Liana
    Um beijo nesse rubro coração.

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  4. Obrigada Liana...vc é q tem uma doce alma para sentir a minha voz.
    Que os meu contos ecoem em sua alma tb.
    beijossssss grandesss
    até o próximo Sarau em que recitarei ele pra vc conforme pedido em msn rsrsrsrs

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  5. Continue a escrever... Dando mãos as letrinas... Faça sopa! Sopa de sílabas... Sopa de frases...
    Sopa de textos...
    Coloque pimentas de acento, condimentos de vírgula; que eu vou aí nesse caldeirão de vocábulos tomar uma colher de palavras, pra ver se ajusto minha língua na culinária "portuga" para me alfabetizar outra vez!

    Sucesso,

    Rev. AJS

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  6. Obrigada Jankus por suas poéticas palavras de incentivo. Vc não sabe o quanto isso é importante pra mim.
    Beijosssssssss aportuguesados em sua alma

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  7. Lílian...
    Pude sentir quão grande é a tua sensibilidade em tranformar palavras em atos, e ao ler sentir um envolvimento tão grande que me fez viajar em lugares tão belos com um anoitecer avermelhado pelo pôr do sol, e saborear deliciosos manjares rubros por tí decifrados.Costumo dizer que assim os autores devem se comportar ao escrever, fazendo-nos leitores viajar nesse universo de letrinhas com significados tão expressivos.
    Amei...
    Ana

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  8. Que bom que vc gostou desse conto e que ele te proporcionou essa "viagem". Confesso que esse é meu conto preferido tb.
    Beijos avermelhados pra vc

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